Ao concretizar uma doação, um ato de liberalidade que transfere bens ou direitos para outra pessoa, a crença comum é de que essa decisão é definitiva.
No entanto, a legislação brasileira, atenta às nuances das relações humanas e às possíveis mudanças de circunstâncias, prevê situações específicas em que a doação pode ser desfeita.
Surge então a questão central: é possível a revogação de doação por arrependimento do doador?
É possível revogar uma doação por arrependimento?
A resposta direta é: em regra, não. O simples arrependimento do doador não configura um motivo legal para a revogação da doação.
O Código Civil brasileiro, em seus artigos 555 a 564, estabelece de forma taxativa as hipóteses em que a doação pode ser revogada.
A estabilidade das relações jurídicas e a segurança dos negócios jurídicos são princípios que norteiam o direito civil, e permitir a revogação por mero capricho do doador fragilizaria esses fundamentos.
No entanto, é crucial compreender que existem exceções e mecanismos legais que podem, indiretamente, permitir que o bem doado retorne ao patrimônio do doador em certas situações.
Vamos explorar algumas dessas possibilidades, com destaque para a doação com cláusula de reversão.
Cláusula de reversão: O que é?
A doação com cláusula de reversão, prevista no artigo 547 do Código Civil, representa uma importante ferramenta para o doador que deseja prever a possibilidade de reaver o bem doado.
Essa cláusula estabelece que, em caso de falecimento do donatário antes do doador, o bem doado retornará ao patrimônio deste último.
É fundamental ressaltar que a doação com cláusula de reversão deve ser expressa no contrato de doação.
Caso contrário, com a morte do donatário, o bem será transmitido aos seus herdeiros, seguindo as regras da sucessão legítima ou testamentária, sem qualquer direito de retorno ao doador.
A inclusão da doação com cláusula de reversão demonstra a intenção do doador de que a liberalidade seja condicionada à sobrevivência do donatário.
Dessa forma, não se trata propriamente de uma revogação de doação por arrependimento, mas sim do exercício de um direito previamente estipulado no ato da doação.
Revogação por ingratidão ou inexecução de encargo
Embora a revogação de doação por arrependimento puro e simples não seja causa para revogação, o Código Civil prevê outras situações graves que justificam o desfazimento da doação.
São elas a ingratidão do donatário e a inexecução do encargo.
A ingratidão do donatário é definida de forma específica pela lei, conforme o artigo 557 do Código Civil. Consideram-se atos de ingratidão que autorizam a revogação da doação:
- Atentado contra a vida do doador ou a prática de crime de homicídio doloso contra ele;
- Ofensa física contra o doador;
- Injúria grave ou calúnia contra o doador;
- Recusa de prestar alimentos ao doador que deles necessite, podendo fazê-lo.
É importante notar que a interpretação desses casos é restritiva, ou seja, apenas as condutas expressamente previstas em lei configuram ingratidão para fins de revogação da doação.
Meros desentendimentos ou desavenças não se enquadram nessas hipóteses.
A inexecução do encargo, prevista no artigo 555 do Código Civil, ocorre quando a doação é gravada com uma obrigação a ser cumprida pelo donatário, e este não a cumpre.
O encargo deve ser lícito e possível, e sua inexecução faculta ao doador exigir o cumprimento ou revogar a doação.
O prazo para pleitear a revogação por inexecução do encargo é de um ano, a contar do momento em que o donatário deveria ter cumprido a obrigação.
Doação irrevogável: Existe mesmo?
A legislação e a prática jurídica frequentemente mencionam a figura da doação irrevogável.
No entanto, é crucial entender que essa irrevogabilidade não é absoluta. Mesmo em casos de doação considerada irrevogável, a revogação ainda pode ocorrer nas hipóteses de ingratidão do donatário ou inexecução do encargo.
A irrevogabilidade da doação geralmente está associada a situações específicas, como doações realizadas em cumprimento de obrigações naturais ou morais.
Doações feitas em contemplação de casamento futuro (doação propter nuptias), ou quando expressamente estipulada como irrevogável por vontade das partes.
Contudo, mesmo nesses cenários, a lei resguarda o direito do doador de revogar a doação diante de condutas graves do donatário ou do descumprimento de encargos.
Como funciona a ação de revogação de doação?
Para reverter uma doação, seja por ingratidão ou inexecução de encargo, o doador precisa ingressar com uma ação de revogação de doação perante o Poder Judiciário.
Essa ação seguirá o rito processual comum e exigirá a comprovação dos fatos que fundamentam o pedido de revogação.
O prazo para ajuizar a ação de revogação por ingratidão é de um ano, contado do momento em que o doador teve ciência do fato que a autoriza. Ultrapassado esse prazo, o direito de revogar a doação por esse motivo não poderá ser exercido.
Na ação de revogação, o doador deverá apresentar provas robustas da ingratidão do donatário ou do descumprimento do encargo, como documentos, testemunhas e outros meios de prova admitidos em direito.
O donatário terá o direito de se defender e apresentar sua versão dos fatos.
A decisão final sobre a revogação da doação caberá ao juiz, que analisará as provas apresentadas pelas partes e a legislação aplicável ao caso.
Caso a ação seja julgada procedente, a doação será desfeita, e o bem doado deverá retornar ao patrimônio do doador.
Lembre-se:
A revogação de doação por arrependimento não encontra amparo na legislação brasileira. O direito civil busca a estabilidade das relações jurídicas, e permitir a revogação por simples mudança de ideia fragilizaria esse princípio.
No entanto, a lei prevê mecanismos como a doação com cláusula de reversão, que permite ao doador reaver o bem em caso de falecimento do donatário, e as hipóteses de revogação por ingratidão do donatário ou inexecução do encargo.
Nestes casos específicos, a lei reconhece a necessidade de proteger o doador diante de condutas reprováveis do donatário ou do descumprimento de obrigações assumidas.
Para buscar a revogação de uma doação, é imprescindível analisar cuidadosamente as circunstâncias do caso concreto e verificar se elas se enquadram nas hipóteses legais.
A assistência de um advogado é fundamental para orientar o doador sobre seus direitos, os prazos legais e o procedimento adequado para ingressar com a ação judicial, caso seja necessário.